A pronúncia culta de “gratuito” é gratúito, com a tônica no "u" do ditongo "ui". Sem discussão. Quem quiser ser visto como uma pessoa que se esmera em falar corretamente, seguindo a ortoépia, a pronúncia recomendada pelos sábios, não pode ter um segundo de dúvida quanto a isso. O mesmo vale para vocábulos como “fortuito”, “intuito”, “circuito” e “fluido”.
Ocorre que, quando tantos falantes, e não apenas no Brasil, insistem numa pronúncia diferente para tais palavras, transformando o ditongo em hiato e enfatizando o "i", condená-los como simplesmente “errados”, sem tentar compreender o fenômeno linguístico que ocorre aí, seria fácil demais.
A prosódia é um campo cheio de armadilhas. Para não entrar no terreno das inevitáveis variações regionais, há casos em que aquilo que hoje é visto como desvio acabará por se impor como a nova norma – ou pelo menos como alternativa aceitável. Sobre isso vale a pena ler os casos, já abordados na coluna, de "subsídio" e "abrupto".
Atenção: a tentativa de compreender linguisticamente o fenômeno do "gratuíto" não significa que eu recomende a pronúncia não tradicional. Longe disso: para ser assimilada na língua culta, ela teria que começar provocando uma alteração na grafia da palavra, com o acréscimo de um acento agudo sobre o "i" – alteração que não é necessária no caso da flutuação prosódica de “subsídio”, mas ocorre em “abrupto/ab-rupto”.
O Houaiss atribui “a pronúncia popular gratuíto” – “comum em alguns lugares do Brasil (especialmente São Paulo)”, acrescenta – à hipercorreção, ou seja, ao desejo do falante culturalmente inseguro de falar “bonito”, que o leva a julgar erradas formas corretas. Pode ser isso mesmo.
No entanto, o próprio Houaiss traz uma informação intrigante: a de que o influente dicionário etimológico de latim dos franceses Alfred Ernout e Alfred Meillet, cuja primeira edição apareceu em 1932, “corrigiu” a pronúncia dos originais latinos gratuitus e fortuitus para deslocar a tônica para o "i".
Acrescenta o Houaiss que “a retificação (…) é relativamente recente, não havendo, por isso, podido alterar o padrão já consagrado” em português. Tudo bem, mas, como se vê, a guerra prosódica surda que alguns tentam abafar com um simples carimbo de “erro” vem de muito longe. O que, convenhamos, torna tudo bem mais interessante.
Fonte: veja.com
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